Caso de estupro abala universidade federal em JF. Denúncia reacende debate sobre sexismo e violência no ambiente acadêmico. FLÁVIO TABAK - O GLOBO, 23/04/12 - 23h04
JUIZ DE FORA (MG) - Não se fala em outro assunto no bucólico campus da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em Minas Gerais. A polícia investiga a denúncia de estupro de uma estudante dentro do Instituto de Artes e Design (IAD), na noite da sexta-feira 13, há dez dias. Explosiva por si só, a notícia se espalhou pela cidade de pouco mais de 500 mil habitantes, a cerca de 180 quilômetros do Rio, e reacendeu o debate sobre sexismo, velocidade das investigações, trotes discriminatórios e temores com a violência entre jovens.
Focos feministas, seguidos por alguns setores da universidade, fizeram barulho em redes sociais e listas de discussão na internet exigindo apuração da denúncia e mostrando casos de trotes ofensivos contra mulheres. Pais de estudantes reforçaram os avisos para que seus filhos universitários não se envolvam em “festas perigosas”, enquanto a reitoria promete investigar tudo e proibiu, por ora, eventos festivos do tipo da festa do dia 13. Alunos mostraram preocupação com a ausência de debate sobre o caso dentro da UFJF; outros acham que a vítima — uma adolescente 17 anos que cursava o primeiro período — bebeu demais e se expôs excessivamente. Marcado por conquistas libertárias, o movimento estudantil vive, em Juiz de Fora e em outras cidades do país, às voltas com denúncias de práticas retrógradas.
As discussões convergem para um pergunta: como tratar denúncias de estupro e de violência contra a mulher dentro do ambiente universitário? Até as polícias Federal e Civil bateram cabeça num primeiro momento, já que se trata de um crime registrado dentro de instituição federal. As investigações só começaram na quarta-feira passada, e, até a sexta-feira, os exames médicos ainda não haviam chegado às mãos da delegada da Polícia Civil de Minas que assumiu o caso.
A conselheira tutelar Delfina Mônica Costa esteve com a jovem no dia seguinte à festa, à espera que os pais chegassem do interior de São Paulo, onde a família vive. A estudante trancou a matrícula e voltou para casa.
— Ela diz ter tomado um copo de cerveja e três ou quatro copinhos de “gummi”, uma bebida feita com vodca e suco (solúvel).
Afirma também que havia uma bala (tipo drops) dentro do copo. A partir do momento em que tomou, ela conta ter perdido a consciência e só se recorda de flashes, com alguém a levando à força para um corredor dentro do próprio instituto. Depois, teve forças para voltar se arrastando para o meio da festa, onde encontrou as colegas. As veteranas a levaram para a pensão e deram-lhe um banho — diz Delfina, ao lembrar o que disse a jovem, que só foi ao hospital no dia seguinte, à tarde. — Ela não tinha a noção de que o conselho tutelar ou a polícia seriam acionados, não queria que os pais soubessem. A médica nos acionou por conta do suposto abuso. Ela foi realmente estuprada porque teve rompimento do hímen, sangramento. Então (o caso) dela foi estupro. É a minha visão.
A UFJF tem 18 mil alunos e, na última sexta-feira, a equipe do “Globo a Mais” conversou com vários deles. Os estudantes do IAD foram os únicos que preferiram não conceder entrevista. Apenas uma funcionária do instituto, que pediu para não ser identificada, relatou que não acredita em estupro porque a jovem teria entrado num carro com outros estudantes e saído do campus. Na faculdade de Biologia, a aluna Ana Carolina Mercês, de 20 anos, conta ter ouvido conversas estranhas no ônibus que passa dentro do campus:
— Desagradou a mim ouvir pessoas dizendo que ela bebeu demais e fez porque quis, que não foi vítima. É um preconceito. Não diriam isso se a história fosse com a própria filha. Reflete, no fundo, uma visão machista. Isso mostra a necessidade de se trabalharem esses assuntos. Já deu, chegou a hora — cobra a jovem.
— Minha avó soube da história e disse que eu só podia andar na rua em bando — conta Nara Lopes, de 20 anos, também da Biologia.
O campus da universidade é privilegiado, com 1,3 milhão de metros quadrados. Há espaço de sobra, tanto para os estudos quanto para festas, com diversos pátios internos, áreas verdes e prédios espaçados. Um lago no centro do terreno é uma das marcas da UFJF. Como em qualquer universidade, outra marca são os trotes. Nos últimos tempos, porém, a recepção de calouros tem recebido críticas, principalmente pelo tratamento dado às mulheres. Um trote recente da turma de Comunicação fez com que as meninas usassem placas com os dizeres “cara de sapatão” e “cara de puta”.
— Como mulher, mãe, lésbica e professora, tenho a dizer que esses trotes são a expressão do preconceito que ainda não tem, em alguns casos, criminalização certa e prevista em lei. Você não tem alunos negros carregando placas pejorativas em relação à sua negritude, ainda bem. Mas, se tivesse, esses alunos sabem que já há lei que penaliza isso — diz Daniela Auad, professora da Faculdade Educação. — O trote ocorre a partir de veteranos de uma faculdade que tem um diretório acadêmico chamado Vladimir Herzog. Sempre que há violência contra a mulher, é preciso ter apuração e punição. Silenciar diante disso e não se responsabilizar é agredir novamente todas as mulheres.
O Diretório Acadêmico (DA) de Comunicação Social tem paredes pintadas por grafites e videogames ligados à televisão. Sobre a geladeira, algumas garrafas de cachaça e vodca, aparentemente em uso, embora não se saiba se o conteúdo era de bebida alcoólica. Na porta, uma placa com o nome do diretório em homenagem a Vladimir Herzorg, jornalista morto em 1975, durante a ditadura militar.
Igor Rodrigues, do terceiro período, faz parte do DA, embora não responda por ele. Para o estudante de 20 anos, não há problema algum em relação aos trotes:
— Ninguém é obrigado a participar. Dei o trote e me senti lesado (com as reclamações). Todos têm o direito de não querer ir, e quem vai sabe como é. Não é o objetivo humilhar ninguém. Acho o machismo um problema absurdo.
Por outro lado, a colega de curso Valéria Fabri, de 19 anos, ficou incomodada com algumas brincadeiras do trote de que participou como caloura:
— Escolhi participar porque é um rito de passagem, mas não sabia do que chamam de inquisição. Eles te colocam numa cadeira, com os veteranos em volta, só para humilhar, fazendo perguntas como “engole ou cospe?”, coisas assim. Te pegam no corredor e levam para a sala. Acho ruim porque não perguntam. Te buscam na hora da aula.
A delegada Maria Isabela Bovalente Santo, da delegacia de Orientação e Proteção à Família e responsável pela investigação, ainda não tem um suspeito. Segundo ela, as investigações estão apenas no início:
— O laudo (médico) ainda não chegou às minhas mãos. A vítima disse ter sido estuprada, a versão dela é essa. Então foi aberto um inquérito para apurar um estupro, mas ainda não há indiciamento. Vamos colher o maior número possível de provas sobre o que aconteceu. Por que essa menina está se dizendo vítima? O que aconteceu nessa festa? Algo aconteceu. Agora, eu não tenho condições de afirmar que foi um estupro. Contamos com a colaboração da vítima, que sabe de alguns traços físicos (do agressor). Temos um prazo de 30 dias, que pode ser prorrogado.
O reitor da UFJF, Henrique Duque, instaurou, na sexta-feira passada, uma comissão de sindicância para apurar, em sigilo e no âmbito da universidade, a denúncia. Também ficou decidido que estão suspensos, temporariamente, os eventos festivos na UFJF que não estejam relacionados às atividades fins da instituição.
— Como reitor e pai, lamento. Tivemos a oportunidade de ligar para o pai da pessoa, que me pareceu, pela conversa, alguém muito sensato, de muito equilíbrio. Queremos apurar a fundo e chegar a quem fez e onde foi feito. Há uma dúvida ainda. O pai também quer investigação — disse o reitor, que também comentou sobre o comportamento de estudantes em trotes — Este ano houve lá fora (da universidade) uma coisa de discriminação. Fiquei assustado e muito surpreso com aquele tipo de comportamento no trote (das placas com frases pejorativas). Nós, que somos educadores, sabemos que é uma mudança de comportamento, que vem da educação. É uma coisa que preocupa muito. Ninguém é contra um trote que marque a passagem do aluno. Já tive conversas com o Ministério Público Estadual, e estamos falando diretamente com o MP Federal. A ideia é que, neste semestre, antes do próximo vestibular, tenhamos uma resolução para limitar esses problemas.
O pai da jovem, que já tem um advogado para tratar do caso, aguarda as investigações, embora mostre alguma descrença:
— Minha filha tem 17 anos e passou em três universidades públicas e duas particulares. Sempre esteve entre as melhores alunas.
Achamos que era melhor (na UFJF) porque nos preocupávamos mais com a segurança. Achei uma república na porta da universidade.
Ela nunca tinha namorado, não saía de casa e nunca havia bebido. Estão querendo dizer que (o crime) foi fora (do campus). Se foi mesmo, alguém viu, e eu também quero ver o circuito interno (as câmeras), então. Minha filha está quieta, não quer ver ninguém e está fazendo tratamento com remédios. Estava há apenas 45 dias na cidade. Estou esperando o prazo dado pela polícia, dando um crédito, mesmo achando que é difícil resultar em alguma coisa.
Calouros como alvosOutras universidades do país já registraram atos de violência e humilhação contra estudantes. Quase sempre, coincidem com o momento do trote. Em janeiro do ano passado, calouras da Faculdade de Agronomia e Veterinária da Universidade de Brasília (UnB) foram obrigadas a simular sexo oral com linguiça e leite condensado. Na época, a Secretaria de Políticas para as Mulheres, ligada à Presidência da República, cobrou explicações da instituição. Em 2006, um aluno da Universidade Federal de Uberlândia, em Minas, levou mais de 250 picadas de insetos depois de ter sido obrigado a deitar sobre um formigueiro. Os responsáveis pelo trote foram expulsos. Em 2009, um estudante de medicina veterinária da Faculdade Anhanguera, em Leme (SP), entrou em coma alcoólico e foi espancado pelos veteranos.